Meu cachorro morreu faz talvez dois meses. Morreu não: fez a passagem, desencarnou, transmutou-se, mudou de morada, enfim, escolham a definição que melhor os aprouver.
Obviamente, fiquei muito triste em não mais tê-lo fisicamente ao meu redor, me culpei, blasfemei, mas ainda fiquei resignado com a ideia de ter compartilhado de dezoito anos de sua companhia.
Foi quando um amigo me disse a seguinte frase: “seu cachorro um dia voltará a te procurar e por certo ele te encontrará novamente”. Algumas palavras daquele nobre amigo, embora já conhecidas no meu pouco extenso vocabulário, soaram diferente naquela vez: “seu”, “voltará”, “encontrará”.
Meditando sobre elas, conclui que ele nunca fora “meu”, já que, pensando na vida física finita e na infinita vida espiritual, somos apenas inquilinos de tudo que pensamos ter: casa, carro, outros bens materiais e nosso próprio corpo, sendo o único proprietário real o próprio Deus. Ora, se não somos proprietários de nada, como poderia me dizer que aquela carinhosa criatura teria sido “minha”? Fomos, sim, companheiros de caminhada.
Já a palavra “voltará” era mais complicada de entender... Como ele voltaria, depois de ter partido, de haver mudado ou se modificado? E, mais complexo ainda, como ele me “encontraria”, pois de certo eu também tenho passado por uma grande transformação? Ele me reconheceria, ou me aceitaria?
De qualquer forma, abracei a ideia carinhosa daquele amigo, passando a me dedicar aos planos daquele possível reencontro, com a paixão da ideia de uma nova convivência. Seria tudo diferente desta vez, pensei. Procurei, então, limpar todos os cantos da minha morada de qualquer vestígio de malefícios à sua saúde, reexaminei minha consciência sobre os erros que eu havia cometido e tracei planos sobre como as coisas deveriam ser e, finalmente, reconstruí sua casinha, desta vez não mais no meio do quintal frio, mas no aconchego interno do lar.
Entretanto, o tempo foi passando, e um misto de ódio e revolta me levou a destruir e a reconstruir aquela casinha várias vezes. A ideia de procurar o conforto da companhia de uma criatura, mesmo que de espécie ou raça diferente, nunca chegou a me comover. Assim, segui cambaleante em minha trôpega esperança de reencontrá-lo.
Foi quando um dia finalmente o revi. Tinha certeza que era o mesmo! A cor em suas nuances, as orelhas, patinhas, estava igual! Mas notei que ele caminhava ao lado de um novo dono (ou companheiro... bem, depende da relação e da identificação feita por ambos). Qual foi minha revolta em ver aquele velho balofo barbado (desculpem...mas foi essa a vibração na hora) sorridente, ao lado do meu cãozinho! As circunstâncias daquele acontecimento eram surreais, bem sei, pois é pouco crível que um animal pudesse voltar ao seu “dono” após ter feito a “passagem”. Mas, para mim, a certeza era maior que todas as dúvidas. Aquele era o “meu” cachorro, apesar de não ter me reconhecido ao caminhar na mesma calçada que eu estava. De nada havia adiantado, pensei, ter passado semanas traçando planos, reexaminando minha consciência e tomado ações para um possível futuro ao seu lado, pois ele havia escolhido outro “dono”. Talvez um dono de mais posses, mais intelectualizado, mais atencioso que eu havia sido. Revivi então o luto e todos os pensamentos autodestrutivos que ele enseja.
Foi quando parei para examinar mais uma vez aquelas palavras: dono, meu, seu... Em tais reminiscências, às quais continuo preso, tenho tido talvez o maior ensinamento de todos e que talvez compreenda o mote mais popularmente conhecido: não somos proprietários de coisa alguma ou de alguém, mas sim tomamos emprestado os bens necessários à nossa sobrevivência e compartilhamos da companhia de algumas criaturas com as quais intercambiamos apoio, caridade, afeto... Dessa forma, sentimentos como egoísmo, inveja, orgulho e carência perdem importância e significado. Uma promoção que chegou a um companheiro de trabalho e não a você, um objeto guardado anos a fio que subitamente cai ao chão, o rompimento de uma relação amorosa, a perda de um ente querido... tudo ganha um novo significado.
Entretanto, às vezes me surpreendo olhando por minha janela, esperando, talvez, ver a meu grande amigo passar, na esperança que ele talvez me reconheça e queira novamente compartilhar de alguns instantes de uma inesquecível convivência. Nas palavras de um outro grande amigo: o amor “é a saudade que fica”.
Xamacuã Buruku - 17/05/2011